A ciência como uma vela no escuro (Carl Sagan)

Nos séculos 18 e 19, as mentes de brilhantes pessoas transformaram o mundo que conhecemos. O mundo saia do antropocentrismo e misticismo para iniciar uma nova era baseada no método científico. O antropocentrismo recebeu três derradeiros golpes, o primeiro dado por Newton (que provou que não estamos no centro do universo), o segundo dado por Darwin (que provou que não somo criados por Deus e que somos como qualquer outro animal) e o último dado por Freud (que desmascarou nosso egocentrismo). Mesmo assim, muitos humanos preferem negar a ciência, os fatos e o método científico, para se agarrar ao misticismo, pseudociência e a fé religiosa. Este blog tem como objetivo, divulgar a ciência, falar sobre ateísmo e religião e instigar o senso crítico. Aqui a ciência será colocada como uma vela que foi acesa com o objetivo de afastar a escuridão.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A memória da água – Parte 2


Neste post eu falei basicamente como a hipótese de memória da água surgiu, foi testada e reprovada pela avaliação crítica. Agora, vamos fazer um exercício que é muito saudável para qualquer pessoa. Vamos imaginar que a água realmente absorve a memória funcional de outras moléculas e verificar as implicações disso. Aqui, como não sou químico nem físico, eu vou focar em sistemas biológicos, tentado explicar da melhor forma possível a implicação da hipótese de memória da água na biologia.

Mas antes de começar com os exemplos, vamos falar de como se dão as interações de moléculas em organismos vivos. A vida, só é possível porque diferentes moléculas interagem com extrema precisão, quase sempre sem erros e enganos. Esta interação específica se dá, primariamente, por duas características das moléculas: 1) a forma tridimensional e 2) a distribuição de cargas positivas e negativas nas moléculas. Isto cria um sistema vulgarmente chamado de “chave-fechadura”. 

A figura abaixo mostra como uma molécula (que podemos considerar a “chave”) se encaixa com perfeição em uma proteína (que podemos considerar a fechadura). Se a molécula ou a proteína possuírem alguma modificação na forma tridimensional ou na distribuição de cargas elétricas, o encaixe não ocorrerá e não haverá interação. A hipótese de memória da água diz que uma molécula de água (mostrada na figura ao lado) pode adquirir a mesma função da molécula ativadora da enzima, ou seja, de alguma forma ela pode se encaixar naquele espaço específico e ativar a enzima específica. E, se isso for verdade precisamos lidar com alguns problemas fundamentais.



Estrutura da proteína Bcl-2 (superfície vermelho, azul e branco) ligada a uma porção da proteína Bax (bolinhas cinzas e palitos). Quando estas proteínas estão ligadas, como mostrado, células tumorais podem sobreviver e crescer. (1)

Uma coisa que a maioria dos biólogos fazem rotineiramente é diluir moléculas em água e agitar esta solução vigorosamente. Este processo é basicamente o mesmo usado para o processo de “memorização” da água. Ou seja, em teoria, estamos dando uma memória funcional à água no dia a dia de um laboratório de biologia. Vou dar um exemplo do meu cotidiano. Todos os dias eu uso uma técnica para produzir cópia de DNA no meu laboratório, chamada de Reação em Cadeia da Polimerase (PCR). Para o PCR funcionar, eu preciso diluir uma molécula específica (chamada de Iniciador) em água. Depois, basicamente, eu uso parte desta solução em outra contendo o DNA e uma enzima. O PCR só funciona se o iniciador interagir de forma muito específica com o DNA. Se considerarmos a memória da água, então cada molécula de água (ou um conjunto de moléculas de água) passaria a ter as propriedades funcionais do meu iniciador. Mas e qual seria o problema?

Bom, vamos falar do motivo de eu diluir meu iniciador na água. Eu faço a diluição para que, no final, eu tenha, por exemplo, 1 molécula de iniciador para 1 milhão de moléculas de água. Isso me ajuda a controlar a eficiência do PCR. Se a água ganhar a memória do iniciador, então eu terei, na pior das hipóteses 1 milhão de moléculas iniciadoras (na melhor das hipóteses seria alguns milhares). Até aí tudo bem, só que eu posso medir a eficiência do PCR e medir quantas moléculas de iniciador foram consumidas ao final da reação. E o que eu obtenho é incompatível com a memória da água. Ao final do PCR, em geral, eu observo uma eficiência de 98% da reação, e vejo que aproximadamente 98% dos iniciadores foram consumidos. Mas como isso vai contra a memória da água. Bom, se á água tivesse a memória funcional, o que aconteceria é que a água seria tão abundante na reação que dificilmente um dos iniciadores seria utilizado, logo, eu não poderia observar que 98% dos iniciadores forma utilizados. Provavelmente nenhum iniciador seria utilizado. Mais importante, pela teoria da memória da água, eu nem precisaria ter iniciadores na minha solução para que a reação de PCR funcionasse. Mas ontem mesmo eu fiz um experimento destes e, a partir de uma diluição de 250 vezes a reação já não funcionou. No meu caso, uma diluição de 250 vezes não é muita coisa quando comparada a diluição realizada para medicamentos homeopáticos.

Se você ainda não está convencido aqui vai outro exemplo da bioquímica. Um procedimento comum em bioquímica é medir a eficiência de enzimas. Para isso, é colocada em uma solução uma quantidade conhecida de enzimas e de moléculas que interagem com estas enzimas. Para isso as moléculas são diluídas e passam pelo mesmo processo que, hipoteticamente, dariam a memória funcional à água. Para medir a eficiência da enzima, é medido o produto da reação da interação entre a enzima e a molécula ativadora. Este produto pode ser qualquer coisa, desde gás carbônico a até um corante.

Um exemplo é a medição de eficiência da enzima Beta-galactosidase. Neste caso, a Beta-galactosidase interage com a molécula X-gal e o produto desta reação é uma molécula de nome complicado, mas que tem a cor azul. Ou seja, conforme a enzima interage com a molécula, a solução vai ficando mais e mais azul. Se a memória da água for verdade, então, quando diluímos a molécula X-gal, todas as moléculas de água adquirirão a função e a capacidade da X-gal. Logo, ao invés de termos uma solução cada vez mais diluída, teremos na verdade milhares de moléculas de água com a capacidade de agir exatamente como a X-gal. E qual o problema?

Reação enzimatica na qual a enzima Beta-galactosidase hidroliza a molecula X-gal, gerando um produto de cor azul.

Bem, neste caso, em um experimento simples, em que testamos a eficiência da Beta-galactosidase em soluções com diferentes diluições de X-gal, o que aconteceria, se a água tiver adquirido a memoria da X-gal, é que ao final da reação a tonalidade da cor azul seria igual em qualquer diluição (podemos medir a quantidade de corante usando um aparelho chamado espectrofotômetro), mesmo quando a diluição for grande o suficiente para que não haja nenhuma molécula de X-gal na solução original. Só que o que vemos é que a cada diluição, a quantidade de cor azul diminui proporcionalmente até que não possa mais ser observada (mesmo em diluições pequenas, quando ainda temos moléculas de X-gal na solução). Olhando a figura acima, vemos que a molécula de X-gal é bem complexa e que a molécula que da a cor azul (o 5,5’-Dibromo-4,4’dicloroindigo) é ainda mais complexa. Bem mais complexas que uma molécula de água. Na verdade, sabemos que esta reação só ocorre porque a enzima Beta-galactosidase possui um local no qual a X-Gal se encaixa com perfeição e só com este encaixe específico a reação pode acontecer.
O fato é que observamos todos os dias que, quanto mais diluída for uma substância, menor a quantidade da substância na solução, logo, menos perceptível ela será.

Um experimento mental interessante para verificar a memória da água é o seguinte. A molécula de glicose interage com proteínas em diversos momentos em nosso organismo. Um destes momentos é logo quando ingerimos a molécula. Ela interage com proteínas nas células em nossa língua e isso causa uma reação que envia um sinal a seu cérebro que diz que aquela molécula é doce. Para o experimento você precisará de uma colher de chá de açúcar, 4 litros de água pura e fervida, um conta-gotas e 4 garrafas de 1 litro. Imagine pegar uma colher de açúcar e colocar na boca. Você sentira o gosto doce do açúcar com certeza. Agora pegue a mesma colher e dissolva em 1 litro da água fervida. Agite vigorosamente por 1 minuto (é, você vai cansar!) e retire uma gota desta água com açúcar e misture. Pegue esta gota e coloque na próxima garrafa com água e continue o processo. Se a água tem a capacidade de adquirir a memória funcional do açúcar, na última garrafa você terá um litro de água em que cada molécula de água agirá como se fosse uma molécula de açúcar. Ou seja, basicamente, você terá 1 kg de açúcar. Agora retire uma colher desta água e experimente. Esta colher terá que ser tão doce quanto a colher com açúcar puro. O que você acha que acontecerá?

Embora os exemplos dados aqui sejam de experimentos que não tem o objetivo de avaliar a memória da água, eles mostram bem que, qualquer que fosse o grau de memória da água, este fenômeno mudaria a forma como fazemos biologia. Mas não mudaria agora, depois que a hipótese foi proposta, teria mudado muito antes. Algo de tal magnitude dificilmente teria passado despercebido em mais de um século de biologia, química e física experimental. Eu posso trazer ainda mais argumentos que mostram outros problemas que teríamos se a água fosse realmente capaz de adquirir a memória funcional de outras moléculas. Mas se juntarmos os argumentos acima, com o contexto de como a hipótese surgiu, e um pouco de avaliação crítica, chegaremos a uma conclusão de que a improbabilidade de a água possui tal aspecto é de tal tamanho que podemos considerar nulo. Ou seja, a água não é capaz de adquirir a memória funcional de outras moléculas.

(1)    http://blogs.nature.com/soapboxscience/2012/02/15/does-a-new-treatment-for-leukemia-herald-a-new-era-in-drug-discovery

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