Neste
post eu falei basicamente como a hipótese de memória
da água surgiu, foi testada e reprovada pela avaliação crítica. Agora, vamos
fazer um exercício que é muito saudável para qualquer pessoa. Vamos imaginar
que a água realmente absorve a memória funcional de outras moléculas e
verificar as implicações disso. Aqui, como não sou químico nem físico, eu vou
focar em sistemas biológicos, tentado explicar da melhor forma possível a
implicação da hipótese de memória da água na biologia.
Mas antes de começar com os exemplos, vamos falar de como se
dão as interações de moléculas em organismos vivos. A vida, só é possível
porque diferentes moléculas interagem com extrema precisão, quase sempre sem
erros e enganos. Esta interação específica se dá, primariamente, por duas
características das moléculas: 1) a forma tridimensional e 2) a distribuição de
cargas positivas e negativas nas moléculas. Isto cria um sistema vulgarmente
chamado de “chave-fechadura”.
A figura abaixo mostra como uma molécula (que
podemos considerar a “chave”) se encaixa com perfeição em uma proteína (que
podemos considerar a fechadura). Se a molécula ou a proteína possuírem alguma
modificação na forma tridimensional ou na distribuição de cargas elétricas, o
encaixe não ocorrerá e não haverá interação. A hipótese de memória da água diz
que uma molécula de água (mostrada na figura ao lado) pode adquirir a mesma
função da molécula ativadora da enzima, ou seja, de alguma forma ela pode se
encaixar naquele espaço específico e ativar a enzima específica. E, se isso for
verdade precisamos lidar com alguns problemas fundamentais.
Estrutura da
proteína Bcl-2 (superfície vermelho, azul e branco) ligada a uma porção da
proteína Bax (bolinhas cinzas e palitos). Quando estas proteínas estão ligadas,
como mostrado, células tumorais podem sobreviver e crescer. (1)
Uma coisa que a maioria dos biólogos fazem rotineiramente é
diluir moléculas em água e agitar esta solução vigorosamente. Este processo é
basicamente o mesmo usado para o processo de “memorização” da água. Ou seja, em
teoria, estamos dando uma memória funcional à água no dia a dia de um
laboratório de biologia. Vou dar um exemplo do meu cotidiano. Todos os dias eu
uso uma técnica para produzir cópia de DNA no meu laboratório, chamada de Reação
em Cadeia da Polimerase (PCR). Para o PCR funcionar, eu preciso diluir uma molécula
específica (chamada de Iniciador) em
água. Depois, basicamente, eu uso parte desta solução em outra contendo o DNA e
uma enzima. O PCR só funciona se o iniciador interagir de forma muito
específica com o DNA. Se considerarmos a memória da água, então cada molécula
de água (ou um conjunto de moléculas de água) passaria a ter as propriedades
funcionais do meu iniciador. Mas e qual seria o problema?
Bom, vamos falar do motivo de eu diluir meu iniciador na
água. Eu faço a diluição para que, no final, eu tenha, por exemplo, 1 molécula
de iniciador para 1 milhão de moléculas de água. Isso me ajuda a controlar a
eficiência do PCR. Se a água ganhar a memória do iniciador, então eu terei, na
pior das hipóteses 1 milhão de moléculas iniciadoras (na melhor das hipóteses
seria alguns milhares). Até aí tudo bem, só que eu posso medir a eficiência do
PCR e medir quantas moléculas de iniciador foram consumidas ao final da reação.
E o que eu obtenho é incompatível com a memória da água. Ao final do PCR, em
geral, eu observo uma eficiência de 98% da reação, e vejo que aproximadamente 98%
dos iniciadores foram consumidos. Mas como isso vai contra a memória da água. Bom,
se á água tivesse a memória funcional, o que aconteceria é que a água seria tão
abundante na reação que dificilmente um dos iniciadores seria utilizado, logo,
eu não poderia observar que 98% dos iniciadores forma utilizados. Provavelmente
nenhum iniciador seria utilizado. Mais importante, pela teoria da memória da
água, eu nem precisaria ter iniciadores na minha solução para que a reação de
PCR funcionasse. Mas ontem mesmo eu fiz um experimento destes e, a partir de
uma diluição de 250 vezes a reação já não funcionou. No meu caso, uma diluição
de 250 vezes não é muita coisa quando comparada a diluição realizada para
medicamentos homeopáticos.
Se você ainda não está convencido aqui vai outro exemplo da
bioquímica. Um procedimento comum em bioquímica é medir a eficiência de
enzimas. Para isso, é colocada em uma solução uma quantidade conhecida de
enzimas e de moléculas que interagem com estas enzimas. Para isso as moléculas
são diluídas e passam pelo mesmo processo que, hipoteticamente, dariam a
memória funcional à água. Para medir a eficiência da enzima, é medido o produto
da reação da interação entre a enzima e a molécula ativadora. Este produto pode
ser qualquer coisa, desde gás carbônico a até um corante.
Um exemplo é a medição de eficiência da enzima
Beta-galactosidase. Neste caso, a Beta-galactosidase interage com a molécula X-gal
e o produto desta reação é uma molécula de nome complicado, mas que tem a cor
azul. Ou seja, conforme a enzima interage com a molécula, a solução vai ficando
mais e mais azul. Se a memória da água for verdade, então, quando diluímos a molécula
X-gal, todas as moléculas de água adquirirão a função e a capacidade da X-gal.
Logo, ao invés de termos uma solução cada vez mais diluída, teremos na verdade
milhares de moléculas de água com a capacidade de agir exatamente como a X-gal.
E qual o problema?
Reação enzimatica na qual a enzima Beta-galactosidase hidroliza a molecula X-gal, gerando um produto de cor azul.
Bem, neste caso, em um experimento simples, em que testamos
a eficiência da Beta-galactosidase em soluções com diferentes diluições de
X-gal, o que aconteceria, se a água tiver adquirido a memoria da X-gal, é que
ao final da reação a tonalidade da cor azul seria igual em qualquer diluição
(podemos medir a quantidade de corante usando um aparelho chamado
espectrofotômetro), mesmo quando a diluição for grande o suficiente para que
não haja nenhuma molécula de X-gal na solução original. Só que o que vemos é
que a cada diluição, a quantidade de cor azul diminui proporcionalmente até que
não possa mais ser observada (mesmo em diluições pequenas, quando ainda temos
moléculas de X-gal na solução). Olhando a figura acima, vemos que a molécula de
X-gal é bem complexa e que a molécula que da a cor azul (o 5,5’-Dibromo-4,4’dicloroindigo)
é ainda mais complexa. Bem mais complexas que uma molécula de água. Na verdade,
sabemos que esta reação só ocorre porque a enzima Beta-galactosidase possui um
local no qual a X-Gal se encaixa com perfeição e só com este encaixe específico
a reação pode acontecer.
O fato é que observamos todos os dias que, quanto mais diluída
for uma substância, menor a quantidade da substância na solução, logo, menos
perceptível ela será.
Um experimento mental interessante para verificar a memória
da água é o seguinte. A molécula de glicose interage com proteínas em diversos
momentos em nosso organismo. Um destes momentos é logo quando ingerimos a molécula.
Ela interage com proteínas nas células em nossa língua e isso causa uma reação
que envia um sinal a seu cérebro que diz que aquela molécula é doce. Para o
experimento você precisará de uma colher de chá de açúcar, 4 litros de água
pura e fervida, um conta-gotas e 4 garrafas de 1 litro. Imagine pegar uma
colher de açúcar e colocar na boca. Você sentira o gosto doce do açúcar com
certeza. Agora pegue a mesma colher e dissolva em 1 litro da água fervida. Agite
vigorosamente por 1 minuto (é, você vai cansar!) e retire uma gota desta água
com açúcar e misture. Pegue esta gota e coloque na próxima garrafa com água e
continue o processo. Se a água tem a capacidade de adquirir a memória funcional
do açúcar, na última garrafa você terá um litro de água em que cada molécula de
água agirá como se fosse uma molécula de açúcar. Ou seja, basicamente, você
terá 1 kg de açúcar. Agora retire uma colher desta água e experimente. Esta
colher terá que ser tão doce quanto a colher com açúcar puro. O que você acha
que acontecerá?
Embora os exemplos dados aqui sejam de experimentos que não
tem o objetivo de avaliar a memória da água, eles mostram bem que, qualquer que
fosse o grau de memória da água, este fenômeno mudaria a forma como fazemos
biologia. Mas não mudaria agora, depois que a hipótese foi proposta, teria
mudado muito antes. Algo de tal magnitude dificilmente teria passado despercebido
em mais de um século de biologia, química e física experimental. Eu posso
trazer ainda mais argumentos que mostram outros problemas que teríamos se a
água fosse realmente capaz de adquirir a memória funcional de outras moléculas.
Mas se juntarmos os argumentos acima, com o contexto de como a hipótese surgiu,
e um pouco de avaliação crítica, chegaremos a uma conclusão de que a
improbabilidade de a água possui tal aspecto é de tal tamanho que podemos
considerar nulo. Ou seja, a água não é capaz de adquirir a memória funcional de
outras moléculas.
(1)
http://blogs.nature.com/soapboxscience/2012/02/15/does-a-new-treatment-for-leukemia-herald-a-new-era-in-drug-discovery